Se Deus é onipotente (pode tudo), onisciente (sabe tudo) e benevolente (é bom), por que o mal existe?
Esse é o chamado problema do mal, que desafia tanto a lógica quanto a fé. A dor, a injustiça e o sofrimento parecem contradizer a ideia de um Deus amoroso e soberano.
A existência do mal é uma das questões mais antigas da humanidade, e para respondê-la com profundidade, precisamos olhar por três lentes: teológica, filosófica e espiritual. Vamos destrinchar isso com clareza e reverência.
Gottfried Leibniz: O melhor dos mundos possíveis
Leibniz, filósofo e matemático do século XVII, acreditava que: "Deus, sendo perfeito, escolheu criar o mundo que, entre todas as possibilidades, traria o maior bem possível com a menor quantidade de mal."
Leibniz propôs que, entre todas as possibilidades, Deus escolheu criar este mundo — mesmo com sofrimento — porque ele permite a manifestação do bem maior.
Para ele, o mal é instrumental: é permitido para que virtudes como coragem, compaixão e perdão possam existir.
Sem dor, não haveria superação. Sem injustiça, não haveria justiça restauradora.
Leibniz reconhece que o mal existe, mas argumenta que:
O mal pode ser necessário para que certos bens maiores existam (como coragem, perdão, compaixão).
Deus permite o mal não por descuido, mas porque ele é instrumental para um plano maior
O mundo sem nenhum mal poderia ser menos rico, menos livre ou menos capaz de gerar virtudes.
📖 Romanos 8:28 — "Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus…"
A tese de Leibniz nos desafia a ver o mundo com olhos de fé e razão. Mesmo com dor, injustiça e sofrimento, este mundo pode ser o palco onde o bem maior se revela — especialmente quando olhamos para a cruz.
Viktor Frankl: O sofrimento com propósito transforma
Viktor Frankl foi um psiquiatra austríaco e sobrevivente de quatro campos de concentração nazistas, incluindo Auschwitz. Em meio à fome, à perda da família e à brutalidade, ele desenvolveu a logoterapia, uma abordagem psicológica centrada na busca de sentido. O sofrimento com propósito transformação.
"Quem tem um porquê, enfrenta qualquer como." — Viktor Frankl
A visão de Viktor Frankl sobre o sofrimento é uma das mais profundas e transformadoras do século XX — e tem tudo a ver com fé, resiliência e propósito. Vamos explorar essa ideia com profundidade, conectando-a à espiritualidade cristã e à obra redentora de Cristo.
A essência da logoterapia: Frankl acreditava que o principal impulso humano não é o prazer (como dizia Freud) nem o poder (como dizia Adler), mas o sentido. Ele observou que:
Pessoas que encontravam propósito — mesmo em meio à dor — tinham mais chances de sobreviver emocionalmente.
O sofrimento, quando acolhido com significado, pode se tornar fonte de transformação e não de destruição.
O ser humano sempre tem liberdade interior: mesmo quando tudo é tirado, ainda pode escolher sua atitude diante da dor.
Conexão com a fé cristã: A visão de Frankl dialoga profundamente com a espiritualidade cristã:
Romanos 5:3-4 — "A tribulação produz perseverança; a perseverança, experiência; e a experiência, esperança."
Isaías 53:5 — "Pelas suas feridas fomos curados."
Jesus não apenas sofreu — Ele deu sentido ao sofrimento.
A cruz é o maior exemplo de dor com propósito: o sofrimento do inocente gerou salvação para os culpados
Cristo transforma a dor em redenção, o luto em missão, a ferida em testemunho.
Viktor Frankl nos ensina que o sofrimento pode ser um portal para o crescimento. A fé cristã nos mostra que esse portal tem nome: Jesus Cristo. Ele não apenas caminha conosco na dor — Ele a transforma. E quando encontramos propósito na cruz, descobrimos que até o vale mais escuro pode se tornar caminho de luz.
Agostinho de Hipona: O mal como ausência do bem
Agostinho, influenciado pela filosofia platônica e pela revelação cristã, concluiu que:
O mal não é uma substância, nem uma criação de Deus. O mal é a privação, a ausência, a corrupção do bem.
Em outras palavras, o mal não tem existência própria — ele é como a escuridão, que só existe onde a luz está ausente. Tudo o que Deus criou é bom. O mal surge quando há desvio, distorção ou ausência desse bem.
Tiago 1:17 — "Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes…"
Três níveis da concepção agostiniana do mal
1. Mal metafísico — O mal como não-ser
Tudo que existe foi criado por Deus e, portanto, é bom em sua essência.
O mal não é uma "coisa" criada, mas uma diminuição do ser, uma falha na plenitude do bem.
Exemplo: a cegueira não é uma substância, mas a ausência da visão.
Gênesis 1:31 — "E viu Deus tudo quanto havia feito, e eis que era muito bom."
2. Mal moral — O resultado do livre-arbítrio mal usado
Deus deu ao ser humano liberdade para escolher — e com isso, a possibilidade de errar.
O mal moral surge quando o homem voluntariamente se afasta do bem, ou seja, de Deus.
Agostinho afirma: "O mal é a vontade corrompida, que se afasta do bem supremo."
Deuteronômio 30:19 — "Escolhe, pois, a vida, para que vivas…"
3. Mal físico — Sofrimento, dor e morte
Embora não desejado por Deus, o mal físico é consequência do pecado original.
Ele pode ser usado por Deus como instrumento de correção, purificação e revelação.
Agostinho via o sofrimento como parte de um plano maior, onde até o mal pode ser redimido.
Romanos 8:18 — "As aflições do tempo presente não se comparam com a glória que em nós há de ser revelada."
Cristo: A resposta encarnada ao mal Agostinho não apenas refletiu sobre o mal — ele apontou para Cristo como a solução.
João 1:5 — "A luz brilha nas trevas, e as trevas não a derrotaram."
Jesus é o bem supremo encarnado. Nele, o mal é vencido não pela força, mas pela luz
A cruz é o lugar onde o mal (ódio, injustiça, dor) foi absorvido e transformado em redenção.
Cristo não apenas restaura o bem — Ele é o bem que preenche o vazio do mal.
Isaías 53:5 — "Pelas suas feridas fomos curados."
Como o cristão deve se relacionar com o mal?
A teologia cristã oferece uma abordagem rica e multifacetada sobre como o cristão deve se relacionar com o mal. Vamos explorar isso em camadas:
1. Reconhecer o mal como realidade presente, mas não definitiva
O mal entrou no mundo por meio do pecado original (cf. Romanos 5:12), e desde então, faz parte da experiência humana.
A Bíblia não nega o mal — ela o encara de frente. Jó, os Salmos, os profetas e até Jesus choraram diante da dor e da injustiça.
O cristão não é chamado a ignorar o mal, mas a enfrentá-lo com esperança.
"No mundo tereis aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo." — João 16:33
2. Ver o mal à luz da cruz
A cruz é o maior paradoxo: o mal (a crucificação do inocente) se tornou o meio da salvação.
Jesus não apenas sofreu — Ele venceu o mal com amor sacrificial.
O cristão é chamado a carregar sua cruz, não como punição, mas como caminho de redenção.
"Completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo." — Colossenses 1:24
3. Resistir ao mal com fé e ação
O mal não deve ser aceito passivamente. Paulo exorta: "Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem" (Romanos 12:21).
Isso inclui:
Orar contra as forças espirituais do mal (cf. Efésios 6:12)
Agir com justiça e misericórdia no mundo
Ser luz em meio às trevas
4. Buscar sentido mesmo diante do sofrimento
Como Frankl ensinou, e como a teologia cristã confirma, o sofrimento pode ser transformado em missão.
A dor não é desejada por Deus, mas pode ser usada por Ele para moldar o caráter, despertar vocações e gerar compaixão.
"A tribulação produz perseverança; a perseverança, experiência; e a experiência, esperança." — Romanos 5:3-4
5. Esperar pela restauração final
A esperança cristã não está apenas em suportar o mal, mas em crer que ele será vencido definitivamente.
O Apocalipse promete um novo céu e nova terra, onde "não haverá mais morte, nem pranto, nem dor" (Apocalipse 21:4).
O cristão vive entre o "já" da vitória de Cristo e o "ainda não" da consumação final.
Em resumo:
O cristão deve se relacionar com o mal com:
Realismo: reconhecendo sua presença
Esperança: confiando na vitória de Cristo
Resiliência: transformando dor em missão
Ação: combatendo o mal com o bem
Fé escatológica: aguardando a restauração final
Conclusão: O mal não tem a última palavra. Agostinho nos ensina que o mal não é uma força rival de Deus — é um vazio que só Deus pode preencher. E Cristo é a plenitude que invade esse vazio. A resposta ao mal não está apenas na lógica — está na cruz.